skip to Main Content

Lá vem ele!

— Não vou chegar perto de jeito nenhum!

A sala tinha uma penumbra adequada para a ocasião. As lamparinas que antes faziam parte do cenário da casa foram substituídas por poucos castiçais espalhados estrategicamente.

Já havia uma boa quantidade de pessoas. Algumas sentadas, mas a maioria em pé. Dona Inês, mal-intencionada, ficou perto da mesa que amparava os quitutes feitos pela dona da casa. Do lado de fora, um outro grupo mais despojado permitia-se um diálogo em tom mais alto, sem, entretanto, chamar atenção.

Ricardo, na entrada da porta resistia a todo custo adentrar no recinto. Lilian, apertando a mão dele, como alguém que espreme um limão, sentenciou:

— Você está maluco. Claro que vai entrar! Eu não irei ver o meu tio sozinho. Afinal, você veio comigo pra quê? Vai entrar sim!

O namorado, com a mão esmagada, pisava o chão com passos curtos tentando adiar o momento pelo qual esperou nunca passar na vida.

À medida que o casal avançava – ele dois passos atrás dela, que o puxava pela ponta do casaco, como se fossem rédeas – cumprimentos cabisbaixos foram correspondidos. O piso de ardósia esgotado pelo tempo foi torturado pelas passadas de Ricardo que parecia friccionar o solo arrastando-se pelo salão. Vez em quando, seu corpo era projetado involuntariamente pelos estanques dos puxões feitos por Lilian.

— Vem! — disse Lilian entre os dentes e quase sussurrando, crendo que ninguém a ouvia.

A viúva estava à esquerda deles vestida de negro da ponta até a cabeça deixando espaço apenas para as mãos e o rosto. Nem o pescoço escapou. Apesar da vestimenta, um semblante incompatível com uma pessoa que acabara de perder o marido brotava do seu rosto. Levantou levemente o nariz pontudo, em sinal de aceno para a sobrinha, que conduzia coercitivamente o namorado.

Ricardo suava por todos os poros. O coração ritmava impulsos descompassados. Seus olhos assombrados pareciam os de uma coruja de tão arregalados.

Lilian pôs a mão sobre a madeira brilhosa do caixão e seus olhos encheram-se de tristeza molhada. O namorado chegou alguns segundos depois olhando sistematicamente para o teto e para os lados. Os pelos dos seus braços levitavam arrepiando até a nuca. O cheiro das flores que preenchiam o espaço entre o caixão e o corpo do tio de Lilian provocou espirros contidos, fazendo com que seu rosto ficasse da cor de um pimentão. Uma das mãos na boca e a outra sequestrada pela namorada.

— Amor, isto não está te fazendo bem, vamos lá para fora tomar um ar e depois voltamos, que acha? — disse Ricardo, com voz de compadecido.

A tentativa frustrada do namorado em livrar-se daquela situação desencadeou um choro doído na sobrinha do defunto que, aos prantos, respirava fundo e lamuriava: — Olha para ele, não parece que está dormindo? — E tornou a chorar.

A vizinhança que veio para velar o morto foi contaminada pelo choro sentido de Lilian e até do lado de fora ouviu-se os choramingos melancólicos. Inclusive dona Inês, com a boca cheia de comida, soluçava. Todos choraram ao seu jeito a morte repentina do Sebastião. Um sujeito bonachão e querido por todos. Foi um choque sua abrupta passagem. O sentimento de incredulidade tomou conta de todos os amigos e parentes. Todos concordavam que Tião levava uma vida desafiadora, considerando seu apreço excessivo pela bebida e os “puxões de orelha” que recebia de sua esposa, com direito a panelas voando sobre sua cabeça. Tudo bem que em tom jocoso o falecido dizia: “Vou beber até morrer hoje!”, mas obviamente sabia-se que era força de expressão, mesmo que não tenham sido poucas as vezes que chegou desfalecido em casa.

Fato é que ninguém, exceto por Lilian, teve coragem de ver Tião abatido no caixão.

Bom, há um reparo a fazer. A bem da verdade, nem todos choravam naquele instante. Duas pessoas destoavam das demais: Ricardo, cujo foco era evadir-se do local a qualquer instante, e a viúva que estranhamente se mantinha à margem dos sentimentos fúnebres.

A sobrinha, sem largar a mão do apavorado namorado, curvou-se diante do corpo e beija o tio, despedindo-se.

Nesse momento, ao colar seus lábios na testa do falecido, uma sensação de espanto tomou conta de Lilian aponto de ela ter engolido o choro. Com as pupilas esbugalhadas virou-se para o namorado e cochichou:

— Que estranho! A pele dele ainda está quente!

Um outro arrepio, mais forte do que o primeiro, possuiu Ricardo ao ouvir a revelação da namorada. Um ímpeto inexplicável o fez romper o pavor de encarar o morto. Ao fixar os olhos no rosto de Sebastião, viu uma pétala desgarrada das inúmeras flores que envolviam o corpo mover-se pelo vento das narinas do moribundo.

— Meu Deus, ele está vivo! — exclamou Ricardo rompendo a barreira do som da sala a ponto de ser ouvido extramuros.

Lilian, assustada, cambaleou e deu de encontro com o caixão, que balançava. Ato contínuo, o defunto, tal qual fazem aqueles que se recuperam depois de um afogamento, puxou o máximo de ar que pode e disparou um gemido sinistro.

Quando a sobrinha deu por si, já estava do lado de fora da casa, levada pelo namorado que saiu desembestado, como literalmente alguém que acaba de ver um morto ganhar vida.

Dona Inês cuspiu o quibe com o rote e tudo. As outras pessoas, que a distância velavam o corpo, passaram sebo nas canelas. Uma gritaria instalou-se na casa fazendo tremer os castiçais.

Enquanto isso, a viúva pé ante pé escondeu-se no quarto de hóspedes, ao lado, deixando apenas uma fresta da porta para espiar e saborear sua pequena vingança por ter que aturar as noites a fio de bebedeira de Sebastião. Cansada dos efeitos da boemia do marido planejou detalhadamente uma forma de lhe dar um susto.

O ex-defunto viu todos saindo atabalhoadamente na direção da rua e, cambaleante, acompanhou o fluxo ainda sem entender o que estava acontecendo.

Uma parte da vizinhança já estava longe, incluindo Ricardo que arrastava Lilian pelo asfalto. Outra parte cercava a casa onde havia o velório, com olhos apavorados. Quando Sebastião pôs os pés na rua, uma nova histeria tomou conta dos olheiros que fugiam do local de maneira desorganizada. Em meio aos trancos e barrancos, berros de alerta se multiplicavam: “Lá vem ele! Corre!”.

O defunto, aturdido, correu na direção das pessoas olhando para trás e perguntando: “Quem?”.

Por alguns bons minutos a sequência aconteceu: a vizinhança correndo do ex-defunto e ele correndo do nada!

— Lá vem ele! Corre!

— Quem?

Back To Top