Me Sacode!
Um estrondo chamuscado deixou todos petrificado. Faíscas vermelhas vindo do transformador no alto do poste foram algozes de uma escuridão densa e aterrorizadora. No meio e em volta da praça ovalada ninguém se mexia. Seu Lindolfo, um velho sacana que momento antes tentava espiar por debaixo da saia rendada de um menina, parecia um dois de paus. Para quem conseguisse enxergar o veria com as mãos segurando a barriga como se fosse uma melancia que acabara de comprar na feira. Um instinto esquisito de proteger a roliça. Não passava nem agulha. Dona Joana, sentada no banco estava, sentada ficou. Sacou o leque da bolsa e começou a balança-lo desordenadamente. O nervoso, em um estalo, passou a consumi-la. O magricela, primeiro da fila na barraca do beijo, incrédulo clamava ao léu pela beijoqueira sumida. Esta por sua vez, fazia o sinal da cruz três vezes e agradecia aos céus pela providencia divina que interrompeu aqueles lábios libidinosos e mau cheirosos encontrassem os seus, carnudos e quase angelicais. Duas crianças mergulharam subitamente no interior da barraca e deram o rapa nos brinquedos da pescaria. Um fuzuê dos diabos!
Enquanto isso, Nelson interpela a esposa: Cê viu Marcinha? A pergunta penetrou no fundo do peito de Inês como se fosse uma adaga traiçoeira. Em resposta ela dispara furibunda: hei, não faz essa brincadeira comigo não. Ela tava do seu lado inda agorinha!
Mal se podia notar a expressão dos rostos em meio aquele breu, porém o semblante de Nelson, depois da resposta de Inês, não escondeu que havia se distraído e perdido a filha de vista. Naquele instante o o medo do escuro que lhe acompanhava desde sempre perdeu para dois outros sentimentos maiores: medo da perda e medo da dor. Medo por ter perdido a Marcinha e medo da dor dos tabefes que Inês começara a desferir-lhe. E olha que ele estava com sorte porque de cada quatro tapas três ela esbofeteava o vento.
A festa junina local de Marilândia, interior do Rio de Fevereiro, acontecia aos trancos e barrancos. Não havia muito clima e metade da pequena população protestara contra o evento, em respeito ao luto pelo padre Josualdo, falecido no início do ano. A outra metade, na verdade pouco mais dela vencera uma espécie de peblicito em prol da festividade, cujos votos foram colhidos através de uma urna que ficou em frente ao bar do seu Manoel, lugar preferido do padre, depois da Igreja, claro. Linguas hereges diziam que o clérigo, após sair do seu dileto estabelecimento comercial, celebrava missa da tarde em ritmo de pout-pourri: em latim, em português e em italiano.
É o padre! É o padre Josualdo! Vocês têm que respeitar o luto! Uma voz insólita esbravejava em frente a igreja, no pé da praça, atribuindo a falta de luz a insatisfação do falecido. Foi o bastante para que um frenesi percorresse as veias dos párocos. Ouviu-se gritos seguidos de orações. Grande parte dos presentes ajoelhados tinham gestos sincronizados em uma verdadeira coreografia em nome do Pai.
O tumulto aflorou ainda mais a agonia dos pais de Marcinha, que saíram tropeçando nos obstáculos animados e inanimados do meio do caminho, aos gritos em busca da filha.
Nelson e Inês, andando de mãos dadas e chamando pelo nome da desaparecida olhavam para todas as direções. A terra levantada pelo furdúncio dos pés apavorados empoeiravam os olhos da mãe angustiada. O pânico passou a dominar o pai, que por cacoete coçava a careca emoldurada por parcos cabelos negros do lado.
A visão, já acostumada com a falta luz e com a ajuda do céu estrelado permitia aos Mirilandenses pouco a pouco identificarem uns aos outros.
Há alguns metros do casal que procurava a filha, um chamado abafado eram-lhes familiar. Me sacode! Me sacode! Me sacode! Dentro de uma caixa retangular azul com dois metros e vinte de altura, uma menininha, com cinco anos de idade, enchia o pulmão de ar e berrava com uma força até então desconhecida. A dona dos cachimbos negros não conseguia chorar. Só sabia gritar, imersa na negritude de um cerco de polietileno. À medida que o tumulto aumentava do lado de fora a menina gritava ainda mais do lado de dentro. Me sacode! Me sacode! Me sacode!
Nelson e Inês seguiram o voz. Antes de chegar ao destino viram um homenzarrão de meia idade e pescoço atarracado chacoalhando uma estrutura um pouco maior do que seu tamanho. Quantos mais o gigante agitava a espécie de caixa, mais a menina gritava e gritava!
Os pais não tinham dúvidas. As súplicas eram de Marcinha. A filha desaparecida estava presa e encurralada pelo monstro de quase um metro e noventa bem distribuídos em cem quilos.
O sino da igreja, mesmo no escuro, era golpeado e ressoava um som metálico por toda a região. Gritos de Aleluia juntavam-se às orações e aos gritos de Marcinha.
As mãos desataram. O pai correndo com passadas largas vai de encontro a besta-fera que aprisionava sua filha. Sabia da diferença brutal entre a sua força e a do gigante. Seria uma luta de David contra Golias e como estava em jogo a vida de sua amada filha rogava por um milagre do padre Josualdo para que tivesse a mesma sorte do filho de Jessé na célebre passagem bíblica.
De súbito, Nelson usou toda a gravidade possível para desferir um soco nas costas do bruto. O grandalhão sequer sentiu o impacto da bordoada. Girando seu pescoço por cima de seu ombro, o troglodita faz uma cara de espanto. O seu oponente lança um novo soco de baixo para cima, como se fosse um pugilista em início de carreira. O golpe passa raspando ao queixo da besta gigante. Nem cócegas ele sentiu. O homem, com olhos de quem não dormiu, esbraveja e ao mesmo tempo levantava a mão simulando um soco: O senhor tá maluco! Tá me agredindo por quê?
De repente, sem terminar a frase direito, o bruta montes sente um braço em sua goela vindo por de trás, ao mesmo tempo que um peso nas suas costas fazia-lhe curvar levemente. A fera, com as mãos no braço que pressionava sua glote, balançava-se tentando livrar-se daquela carga inesperada sobre o seu corpo. Quanto mais ele agitava-se, mais o inimigo fincava-lhe as pernas em sua cintura como alguém que crava a espora em touro brabo. A agitação fez a anágua do vestido de Inês descer por suas pernas, quase revelando suas partes íntimas.
Me sacode! Me sacode! Me sacode! – Insistia Marcinha.
Nelson, com os olhos arregalados ao ver a esposa em cima da cargunda do homenzarrão enche-se de ímpeto e desfere o golpe fatal que derrubou o opressor de sua filha no chão!
Inês, desmonta da besta e com um pedregulho bate seis vezes ininterruptas na maçaneta até abrir a porta. Marcinha é tomada pelos braços, aos prantos! O pai aproxima-se em num abraço coletivo derrete-se em lágrimas.
O gigante um pouco grogue é ajudado pelo colega de função. Ambos eram funcionários da empresa que fornecia banheiros químicos para a região e trabalhavam na vigília para que o produto voltasse intacto para o depósito. Era a novidade do momento. Em Marilândia, o povo vivia ressabiado com o invento e mal utilizavam. As crianças adoravam esconder-se no quarto da privada, como chamavam o banheiro.
Ainda cambaleante o bruto é amparado pelo parceiro que dispara contra os pais de Marcinha:
– Meu deus! Por que vocês bateram nele? Aonde estão com a cabeça? O sujeito foi ajudar a criança e é coberto de porrada? A menina pedia incessantemente para sacudi-la como se tivesse entalada ou sei lá o quê? Prontamente o Roberto foi para o banheiro, tentou abrir a porta e não conseguiu. Pensou em arrombar, mas ela não parava de gritar: me sacode! me sacode! me sacode! Assim, ele passou a sacudir o banheiro um pouco para ver se ajudava, enquanto eu buscava uma chave mestra para abrir a bendita da porta. Não sei o que deu em vocês! Deveriam agradece-lo e não espanca-lo!
O casal que soluçava imediatamente parou. Um rubor invadia as branquíssimas bochechas de Inês. Nelson, soltou duas exclamações: meu santo padre Josualdo! Minha Nossa Senhora do amparo! E arrastou-se até o gigante caído pegando a mão do sujeito, três vezes maior do a sua. Em seu nome e da esposa pediu desculpas encarecidas ao homem. Explicou que a filha nunca tinha se perdido e por isso, após a queda da luz que deixou todos no breu, entraram em pânico, muito também em função do desvario que tomou conta do povo. Quando ouviram a voz de Marcinha só conseguiam concentrar-se no chamado e esqueceram do significado das palavras, pois já estavam acostumados com aquele tipo de vocabulário trocado da menina. A doutora avisou que temos que sempre corrigi-las, mas muitas vezes acabamos deixando passar – complementou o pai.
O caído e o que segurava não entenderam muito bem a explicação. A bem da verdade, o homenzarrão não estava a fim de entender nada e com cara de quem comeu e não gostou retirava do corpo a terra que aparecia por toda parte.
Do outro lado, uma poodle latia desesperadamente do alto de uma mesa de cimento, com aparência de despero e sem coragem de pular. A cena chamou a atenção dos vigias e dos pais ao mesmo tempo, visto que Marcinha, com o dedo em riste, desvencilhou-se do colo da mãe e apontava para a cachorrinha conclamando: sacode ela! Sacode ela! Sacode ela!
Um sorriso brotou do rosto do grandalhão seguida de uma gargalhada conjunta depois que a ficha dele caiu e entendeu que a menina dos cabelos negros encaracolados pugnava para que a ajudasse e não a sacudisse. Em vez de: Me sacode! Me sacode! Me sacode! Queria na verdade dizer: me acode! Me acode! Me acode!
Vai vendo!