Tem alguém no meu quintal!
Passa das onze e meia da noite e eu já ouvi dois assovios. Se houver um terceiro, minha mãe descerá da varanda de casa com o ar de reprovação e chinelo na mão – penso. Eu não posso nem fingir que não ouvi. Os pulmões da minha mãe impulsionavam seus assovios de uma maneira que qualquer um na região seria capaz de . Como eu estou na frente da minha casa, do outro lado da rua, sentado em um tronco de árvore, o som parece penetrar meus tímpanos como uma trombeta.
Na verdade, Vaninha e Andreia é que estão sentadas no tronco – não sobra lugar para mais ninguém quando elas resolvem se apropriar do assento. Ou melhor, até caberia se o privilegiado fosse do interesse de uma delas ou das duas. Estou sentado no chão. Como não me dão bola, meu destino é dividir o cimento da calçada com os outros colegas e também com as formigas que de vez em quando me inspecionam os fundilhos do short surrado que mal me protege de tanto já ter se no chão. Pelo menos a visão dos dois pares de pernas compensa roçar a bunda na calçada.
— Que horas são? — pergunto meio ressabiado e, antes que alguém faça aquele trocadilho ridículo: oração é na igreja!, agarro o primeiro pulso que avisto ostentando um relógio e trato de eu mesmo ver as horas: Quinze para meia-noite. Estou no limite, penso de novo. Olho de soslaio para a varanda da minha casa a fim de flagrar algum vulto saindo das cortinas da sala. A partir desse instante é um olho no padre e outro na missa. A adrenalina percorre as minhas veias a ponto de desafiar um terceiro assovio e as consequências daí inevitáveis. — Tenho que ir embora — balbucio em franco sinal de nervosismo.
O papo está imperdível. O causo de terror da noite está se enveredando para o grand finale. Um dos amigos, Alfredo, conta sua experiência do dia anterior, na casa do seu primo. A narrativa dele ganha naturalmente um tom de suspense. Sua voz ondula nos decibéis, ora sussurrando, ora quase gritando.
De repente, conta Alfredo, fizeram a pergunta que não queria calar: Quem está aí? Neste momento, ele faz uma pausa de alguns segundos, o suficiente para eu esquecer de minha mãe e ficar de boca aberta pelo espanto. É tia Hilda! – disse o copo, segundo Alfredo. Oh…! Todos nós arregalamos os olhos. As meninas não conseguem conter um grito histérico abafado por suas próprias mãos. A minha boca aberta fica seca. Roberto, outro amigo, fica de pé e ameaça nos deixar. Alfredo está sério e ainda sob o impacto da revelação de ontem.
— Tem certeza que era a sua tia? — pergunta Vaninha para Alfredo. Ele tinha certeza absoluta. Após a revelação, segundo ele, o copo respondeu outras perguntas. Não havia dúvidas de que se tratava da tia do Alfredo, morta há exatamente um ano.
A ambiência amarelada pela luz de mercúrio do poste que ilumina nossa rua parece mais densa. Na esquina, o despacho com charuto, cachaça e um prato de farofa começa a me incomodar profundamente. O vento uiva pelas frestas dos portões da casa. As ruas estão desertas. Com exceção do Roberto, que já estava de pé, todo mundo se levanta ao mesmo tempo como se tivéssemos ouvido a sirene do colégio no intervalo do recreio. Nos despedimos mal e porcamente. Cada um pega o caminho de sua casa. Eu entro na minha. Sei que tenho que passar pelo corredor, afinal a entrada é pela cozinha. Minha mãe não admite deixar a porta da frente aberta. Vão encher a sala de terra, com esses pés sujos! – era a justificativa, que valia para mim, para minha irmã e para meu primo, que morava com a gente.
Pé ante pé, caminho pela escuridão. Depois de dois passos, avisto um vulto na outra ponta, perto da porta da cozinha, que está mais bem iluminada. O movimento era sinistro, como se alguém tivesse tentado me ver e escondeu-se rapidamente no vão da quina da parede que levava à cozinha com o maldito corredor sem luz.
Recuo na mesma proporção – dois passos. Cerro os olhos como se isso fosse me permitir uma visão além do normal. Espero um pouco. Nada. Resolvo avançar na velocidade de um cágado. Já estou na metade do caminho. Uma rajada de vento me pega de assalto por detrás. Paro e dou uma pequena olhadela para minha retaguarda. Em segundos, quando olho mais uma vez para a frente, o vulto espreita-se novamente. Desta vez, de maneira mais acintosa. Ando de costas perguntando: — Quem está aí? — Ninguém responde. Quem quer que seja prefere me pegar desprevenido.
Já se passaram quinze minutos. Não posso correr em direção ao desconhecido. Ele está em vantagem. A melhor opção é sair de casa e tocar a campainha. Assim, meu pai ou minha mãe poderão me ajudar. Mas se um dos meus amigos estiver na janela de sua casa? Vai pensar que eu estou com medo. Não que eu não esteja, mas não posso passar esse recibo. Um homem com treze anos de idade não teme nada e nem ninguém. Ideia descartada, até porque meus pais me matariam se eu os acordasse agora. Fico envolto em meus pensamentos.
Pensei “de um tudo”, como diria minha avó materna. Até escalar o alto muro do vizinho. A ventania não dá trégua e os gemidos das dobradiças da janela do meu quarto, no segundo andar, também não. Um raio rabisca o céu e um estrondo de um trovão faz um súbito arrepio percorrer o meu corpo dos pés à cabeça. Imóvel. Meus olhos são duas sentinelas, prontos para desmascarar o invasor ou a invasora. Escorrego pela parede até o chão, abraçando meus joelhos à espera de um milagre.
De repente, meu coração congela. Sinto um gosto de sangue na boca. Os cabelos dos meus braços, pernas e nuca se arrepiam como se quisessem fugir do meu corpo. Tenho certeza de que tem alguém atrás de mim. Você sabe que sensação é essa: uma mão morna e silenciosa repousando sobre a sua cabeça. Eu acho que estou enfartando. Entrei em alfa. Minha visão escureceu. Desmaiei. Depois de alguns segundos, minha lucidez retorna em meio a vozes. Passei a enxergar novamente. Dois rostos familiares e apreensivos me amparam. Meus pais esboçam um sorriso quando percebem que eu estou de volta.
— Cuidado! Falem baixo. Tem alguém no quintal, perto da cozinha! — avisei. Meu pai se levantou e seguiu em direção ao encontro fatal. Minha mãe em ato contínuo disparou: — Foi por isso que você teve um treco quando seu pai pôs a mão na sua cabeça? — Eu sequer processei a pergunta da minha mãe e prontamente me levantei seguindo logo atrás do meu pai. À medida que avançamos a escuridão do corredor ia se dissipando. Ao chegar bem próximo do final do trajeto, o inimigo finalmente se revela. Rindo, meu pai mostra a que, embalada pelo vento, projetava uma sombra que fazia um movimento de cima para baixo, ora aparecendo, ora sumindo, como alguém que põe a cabeça para espiar em segredo.
Ufa!